Desânimo espiritual ou “acídia”

Irmão João Paulo Santiago, csj

Congregação dos Irmãos de São João

“Alegrai-vos sempre no Senhor!” (Fl 4,4): exortação mais do que agradável que às vezes interessa-nos somente em parte. O “alegrai-vos sempre” é almejado por todos: vida sem tristeza, quem não quer? Já o “no Senhor” nem tanto assim… Por que nós, cristãos, temos às vezes dificuldade em alegrar-nos com as coisas do Senhor? Este desânimo espiritual, que pode nos fazer perder a vontade de estar diante de Deus, sem desejo de ir à missa, rezar etc., é chamado pela Tradição de “acídia”. Do que se trata e como combatê-la?

Para são Tomás de Aquino, a acídia é uma tristeza em relação ao bem divino: não gozamos mais como deveríamos do que provém de Deus, ou até mesmo do próprio Deus.[1]Retomando as palavras de são João Damasceno, ele diz que ela é uma “tristeza acabrunhante”, contrária à alegria proveniente da união a Deus.[2]

Segundo o monge francês Dom Jean-Charles Nault, há várias manifestações da acídia; vejamos algumas delas.[3]

Primeiramente, poderíamos falar de uma perda de sentido da atitude religiosa: não vemos muito o porquê de orar, de ler a Bíblia… de crer e adorar. Há também o desespero que chega com esse desânimo. Sem sentido de Deus, perdemos o sentido da vida.

Outra característica é a instabilidade. Com um desejo perpétuo de mudança, a acídia se manifesta com a cultura do zapping, levando a desaparecer grandes projetos de vida que reclamariam sacrifício. Com esta instabilidade aparece o medo da solidão (estar consigo mesmo ou com Deus) e a incapacidade de crer em nossa vocação (a santidade).

Enfim, perdendo o interesse pelas coisas divinas, o instante presente torna-se quase insuportável. O demônio utiliza então a estratégia clássica: passar o tempo com “youtube” ou “facebook”, ao invés de tomar tempo para Deus. Então, começamos a duvidar: “e se não passasse de uma ilusão?”. “Façamos somente o mínimo para tentar agradar a Deus”: é a tentação da mediocridade, onde não vivemos mais as mínimas coisas na presença do Senhor. E diante desse problema, buscamos distrações e compensações: nossa mente procura outros ares, aparece a tagarelice e a curiosidade com a fofoca, além da agitação corporal.

O problema da acídia se agrava devido às suas “filhas”, tais como o desespero (o pecado se torna tamanho que não cremos mais na Misericórdia Divina), a pusilanimidade (falta de coragem em realizar o que parece difícil) e a divagação da mente pelas coisas proibidas.

Diante da acídia, onde todos nós podemos nos encontrar, quais remédios tomar?

Apoiando-se nos santos monges do deserto e em são Tomás, Nault propõe alguns meios para curar-se dela. O primeiro é o mistério da Encarnação.[4]Deus, na sua infinita misericórdia, olha para a miséria da criatura, se compadece dela, e envia seu Filho para morrer na cruz pelos seus pecados. Receber este mistério na fé e vivê-lo plenamente nos dá a esperança de participar da felicidade eterna – e a “esperança não decepciona, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações” (Rm 5,5.). A graça vem em auxílio de nossa fraqueza: não poderíamos vencer a acídia por nós mesmos.

Porém, a recepção dessa graça não exclui a luta que nos permitir abrir o coração para ela. Devemos então viver a perseverança alegre, possuir uma força na luta banhada de alegria e não de tristeza mórbida: o Cordeiro imolado e ressuscitado já venceu por nós! Quando esse bloqueio “acídico” contra Deus aparece, devemos saber de antemão que devemos perseverar no bem, custe o que custar.[5]

Nesta perseverança, temos quatro “armas” de defesa.[6] A primeira é o manter-se firme no presente, não deixar nossa mente se dispersar pensando em bobagem para que vivamos o momento atual, onde Deus se dá agora.

Além disso, devemos guardar a estabilidade e a fidelidade do nosso chamado à felicidade eterna, temperando os meios que nos conduzem a ela, servindo-se do que é terrestre para que nosso coração se volte para Deus. Faz-se necessário permanecermos firmes na nossa vocação e engajamento: matrimônio, vida religiosa ou sacerdotal. Toda infidelidade é um passo para a acídia. Não é por que “não sinto mais nada hoje” que devo desviar-me do caminho que Deus traçou para mim e que escolhi seguir. A provaçãonos faz crescer.

Em terceiro lugar, deve-se guardar a memória da obra que Deus realizou em nós, lembrando assim do que nos conduziu à nossa escolha.

Enfim, orar com o salmista quando somos tentados pela acídia: “Devolve-me o júbilo da tua salvação” (Sl 51,14). A salvação torna-se fonte inesgotável de júbilo e de alegria.

[1] Cf. AQUINO, Tomás de,Suma Teológica,  IIa-IIae q. 35, a. 2.

[2]Ibid. a. 1.

[3] Cf. NAULT, Jean-Charles, Le démon de midi: acédie, mal obscur de notretemps, L’echélle de Jacob,Dijon 2013, pp. 80-107.

[4] Cf. Ibid. pp. 61-65.

[5] Cf. Ibid. p. 101.

[6] Cf. Ibid. p 101-110.