Padre Celson Altenhofen explica mudanças no processo de nulidade dos casamentos

IMG_2482[1]O Vaticano simplificou o processo que torna nulos casamentos na Igreja Católica. No último dia 8, foi publicada a modificação dos procedimentos para a declaração de nulidade do casamento e a partir de 8 de dezembro, quando a norma entrar em vigor, não serão mais necessários dois julgamentos para que o matrimônio seja considerado nulo. A decisão passa a ser do bispo da diocese. Padre Celson Altenhofen, Vigário Judicial do Tribunal Eclesiástico da Arquidiocese de Salvador, concedeu uma entrevista ao Portal Arquidiocesano explicando como essas mudanças podem impactar na rotina do Tribunal Eclesiástico.

 

PASCOM – O senhor, como Vigário Judicial do Tribunal Eclesiástico de Salvador, pode nos falar algo sobre a repercussão dessas mudanças?

Pe. Celson  – Muitas pessoas telefonam para saber dos seus processos em andamento ou simplesmente por curiosidade. Muitas exigindo celeridade e gratuidade. O que posso dizer é que há inúmeros equívocos em relação ao decreto do Papa. A maioria das pessoas só ouve o que a imprensa veicula e, sabemos todos que a mídia tem seus interesses, como se agora todos os pedidos de nulidade se resolvessem em 45 dias e que tudo fosse gratuito.

PASCOM – Os processos serão mais ágeis?

Pe. Celson – Com certeza, sim. Quanto à celeridade dos processos podemos dizer o seguinte: simplificou-se bastante o processo, no sentido que alguns procedimentos antes exigidos, a partir de 08 de dezembro não o serão mais. Porém, a grande maioria dos processos terá que seguir os mesmos trâmites de antes. O que muda é que não são mais necessárias duas sentenças conformes, isto significa que só em casos excepcionais de apelação será necessário um julgamento em 2ª instância.

A outra inovação que pode ajudar muito na agilização dos processos é a possibilidade de um juiz único em casos específicos, que até pode ser o Bispo Diocesano ou alguém delegado por ele, quando se tem a certeza moral da nulidade matrimonial. Mesmo nesses casos há a necessidade de um procedimento processual correto, embora a investigação não tenha que ser necessariamente tão aprofundada. Nem sempre é tão simples como se imagina. O que o Papa pede é que se tutele a verdade sobre o matrimônio com garantias judiciárias, a fim de evitar o perigo de uma mentalidade divorcista. Os Bispos são os grandes responsáveis para assegurar a seriedade nos processos de nulidade, evitando atenuações e abrandamentos. Infelizmente muitos pensam que agora todo e qualquer casamento possa ser declarado nulo.

PASCOM – É verdade que cada Diocese terá seu tribunal?

Pe. Celson – Essa é uma orientação antiga na Igreja: cada Diocese, quanto possível, tenha o seu tribunal. E é isso que o Papa pede de novo no Decreto: “O Bispo constitua, para a sua diocese, um tribunal diocesano, para as causas de nulidade matrimonial, salva a faculdade do mesmo Bispo de agregar-se a outro tribunal diocesano ou interdiocesano mais próximo”.

De imediato acho difícil que isso aconteça porque boa parte das Dioceses não tem pessoas com titulação (mestrado ou doutorado) em Direito Canônico; também são necessárias as devidas estruturas.

O Santo Padre ainda lembra: Nas dioceses que não têm seu próprio tribunal, o bispo cuide de formar um rapidamente, também mediante cursos de formação permanente e contínua, promovidos pelas dioceses ou pelos seus reagrupamentos e pela Santa Sé, em comunhão de intenções e de pessoas que possam prestar seu trabalho ao tribunal em prol das causas matrimoniais”.

PASCOM – E o tribunal de Salvador?

Pe. Celson – O nosso tribunal é para o Regional NE III todo, isto significa que trabalha para 25 Arquidioceses e Dioceses do Regional, abrangendo Bahia e Sergipe.  É um absurdo. Mais uma coisa, é propriamente a Arquidiocese de Salvador que garante o funcionamento do Tribunal.

PASCOM – Sim, mas as 25 Dioceses não colaboram?

Pe. Celson – Financeiramente pouca coisa. Há um acordo com os Bispos para uma pequena colaboração anual, porém, boa parte das Dioceses se “esquece” de contribuir.

E quanto à ajuda em pessoal, há colaboradores, notadamente auditores, que executam alguns atos judiciais por nós solicitados. Há auditores que colaboram com muito amor e sacrifício, dando do seu tempo e gratuitamente. A eles o nosso cordial agradecimento. Mas, para ser sincero, digo o seguinte: por ser o tribunal de 25 Dioceses, a colaboração deixa muito a desejar. Várias Dioceses do Regional têm padres formados em Direito Canônico, mas até agora apenas uma liberou um padre para atuar diretamente no Tribunal, como Defensor do Vínculo.

PASCOM – E o senhor, como veio para cá?

Pe. Celson – Sou do Sul e Dom Murilo pediu que a minha Congregação – Padres do Sagrado Coração de Jesus (Dehonianos) – me liberasse por 02 ou 03 anos para ajudar na reestruturação do tribunal, o que era uma exigência da Santa Sé. Porém, dentro do projeto de re-estruturação e qualificação do tribunal, há itens que não consigo realizar justamente por conta dessa falta de colaboração mais efetiva da parte das Dioceses. Elas talvez tenham a suas razões e outras prioridades. Nós precisamos de pelo menos mais um, com título na ciência canônica. Além dos trabalhos intensos no dia-a-dia, acompanhando todas as causas processuais, tenho que redigir todas as sentenças; só neste ano já foram 130 sentenças. Trabalho desgastante. Assim, não consigo, por exemplo, trabalhar na formação de Câmaras Eclesiásticas Permanentes nas Dioceses, o que estava no projeto. Gostaria de dar mais apoio aos dedicados auditores e notários (as) das Dioceses.

PASCOM – É por isso que os processos são morosos, isto é, demoram tanto para serem resolvidos?

Pe. Celson – Em 2014, ao iniciar a minha atividade no tribunal, havia em torno de 400 processos pendentes. Convém lembrar que nós ainda somos tribunal de 2ª instância para as Dioceses do Ceará, Nordeste I. Continuam muitos processos pendentes porque a demanda é grande. O problema não é tanto do Tribunal de Salvador. Nós dependemos muito de procedimentos que devem ser cumpridos nas Dioceses de onde vêm os processos. E aí nós temos notáveis atrasos em rogatórias a serem cumpridas, envio de documentos necessários, simples convocação de pessoas para darem vistas ao processo ou assinarem algum documento, editais a serem feitos. Há casos em que esperamos mais de um ano, apesar de nossas insistências e, em outros casos, simplesmente não há retorno e o processo para. Ás vezes isso é perfeitamente compreensível, pois os nossos auditores do interior são obrigados a percorrer longas distâncias para encontrar as pessoas envolvidas no processo, têm outros ofícios e, lembro de novo, fazem isso gratuitamente.  Então, não é em si o Tribunal o único culpado. As Dioceses poderiam estar um pouco mais atentas às necessidades desses seus fiéis que pedem a justiça eclesiástica.

PASCOM – No Decreto do Papa o que se fala quanto à responsabilidade dos Bispos?

Pe. Celson – Diz o Santo Padre: “Deseja-se que, tanto nas grandes como nas pequenas Dioceses, o próprio Bispo ofereça um sinal de conversão das estruturas eclesiásticas e não deixe completamente delegada aos escritórios da Cúria a função judiciária em matéria matrimonial”.

Acho, porém, difícil que essa conversão aconteça a partir de um decreto e de uma hora para outra.  A dimensão judiciária é relegada por muitos a um segundo plano na Igreja.

O serviço prestado pelos Tribunais Eclesiásticos é pastoral bem específica e muito importante. A esse respeito o Santo Padre ainda recorda: “O Bispo, por força do cân. 383 § 1, é chamado a se interessar, com ânimo apostólico, pelos cônjuges separados ou divorciados que, por sua condição de vida, tenham eventualmente abandonado a prática religiosa. Ele, portanto, compartilha com os párocos (cf. cân. 529, § 1) a solicitude pastoral sobre estees fiéis em dificuldade”.

O Papa responsabiliza os Bispos para que haja uma pastoral matrimonial diocesana unitária, onde se esteja atento aos casais de segunda união e, se houver indícios de nulidade do primeiro casamento, esses fiéis sejam encaminhados para um eventual processo judicial de nulidade matrimonial.

PASCOM – O Papa fala da justiça gratuita. O que o senhor tem a dizer sobre isso?

Pe. Celson – A rigor, não há nenhuma novidade, porque desde sempre a orientação na Igreja é esta: que se considere a situação de cada fiel recorrente à intervenção da justiça eclesiástica. Há muitos pedidos de redução de custas e que são atendidos; há justiça gratuita quando se verifica realmente a impossibilidade de o fiel colaborar. Justiça gratuita sempre houve. Então, isso não é novidade. Só um detalhe: somos muitas vezes enganados por pessoas que têm condições de colaborarem. Cito um exemplo: alguém que é dono de uma rede de farmácias ou de outra empresa e diz que não tem condições de pagar, e o padre pároco assina a declaração. Pode isso? Agora, para pagar a festa de casamento gasta R$ 100.000,00 e até mais. Outro casou na Igreja para fazer bonito e, após um ano, se separou e “não podia pagar porque ainda estava pagando o cruzeiro marítimo de lua-de-mel”.  Nós temos muitas despesas e não vivemos do vento. Temos uma equipe muito eficiente atuando no tribunal, graças a Deus; temos as despesas de correio, luz, água, telefone, etc. Quem paga tudo isso? Há muita hipocrisia nisso tudo, de achar que tudo deve ser de graça. Certamente as pessoas que recorrerem ao Tribunal serão instadas a contribuir na proporção de suas possibilidades. Aliás, sempre foi assim. A Igreja nunca deixou de fazer a justiça por falta de pagamento.

PASCOM – No Tribunal de Salvador?

Pe. Celson – Sim, no Tribunal de Salvador são raríssimos os casos em que uma pessoa (demandante) pague a taxa integral. Podem chegar a 05 por ano os que pagam a taxa integral (5 salários, parcelados). E, os outros? Para a maioria há uma considerável redução de custas. Também há justiça gratuita em muitos casos.  Considerando as despesas, ficamos sempre no vermelho. E, quem mantém o Tribunal? Propriamente a Arquidiocese de Salvador. Pergunto: é justo isso?

PASCOM – No documento do Papa o que se diz?

Pe. Celson – O Decreto do Papa diz: “Ressalvada a manutenção dos oficiais e serviços do tribunal eclesiástico, seja assegurada a gratuidade dos procedimentos”. Aí temos duas questões a serem analisadas: Por um lado o Papa pede a gratuidade dos processos e, por outro, reconhece que há custos a ser considerados, como a retribuição justa e digna aos que trabalham nos tribunais (notárias ou notários, secretárias ou secretários, recepcionistas, juízes, advogados, defensores do vínculo e promotores) e gastos com correio (tudo via AR), telefone, água, luz, papel, etc…). Quem vai pagar isso?

Dom Orani Tempesta, Cardeal e Arcebispo do Rio de Janeiro, afirmou num artigo: “Não podemos ficar reféns de processos morosos e dispendiosos. Porém, isso não significa que todos os processos sejam gratuitos. Há custos que devem ser suportados por aqueles que posem pagá-los. E, mais óbvio ainda, que os Bispos devem buscar um modo justo de dar as côngruas aos oficiais dos Tribunais” (ZENIT, 10 de setembro de 2015).

E o que o Papa diz no Motu Proprio? Transfere para as Conferências Episcopais a responsabilidade: “As Conferências Episcopais, salvaguardada as justas e dignas retribuições aos servidores dos tribunais, que sejam assegurados proceddimentos gratuitos…”

A verdade é que agora muitos se acham no direito de “anular” o casamento por qualquer motivo trivial e, mesmo tendo condições, não querem pagar nem as despesas do correio, quando gastaram muito dinheiro para a festa social de casamento. Existe aí no mínimo uma incoerência.

Quanto ao Decreto do Papa, os Bispos (CNBB e Regional) ainda não se pronunciaram. Estamos na espera!

PASCOM – Algo mais, para concluir?

Pe. Celson – Nós, os Vigários Judiciais dos Tribunais Eclesiásticos do Brasil, esperamos que finalmente os Bispos se interessem um pouco mais efetivemante no que se refere a essa área judiciária-pastoral. Afinal, os Bispos são pastores e juízes, como lembra o Papa.