“Viram três e adoraram um”

Dom Gilson Andrade da Silva

Bispo Auxiliar de São Salvador da Bahia

O mistério de Deus aproximou-se da criatura humana na criação, na história da salvação e, sobretudo, no grande mistério da encarnação. Ver o rosto de Deus, meta de todo crente, significa concretamente poder ver o rosto de Cristo, em quem Deus se fez um de nós e traduziu toda a grandeza do seu mistério no rosto de um homem.

Ao celebrar a Santíssima Trindade, recordamos não apenas a densidade do mistério, mas, sobretudo, a sua proximidade. A iconografia cristã procura traduzir, através de suas formas, a luz da presença divina que vindo até nós ilumina todo homem que vem a este mundo (cf. Jo 1, 9).

Um ícone não se pinta, escreve-se, é um “texto” com alfabeto próprio de cores, linhas, expressões dos rostos, para aproximar uma verdade da nossa fé. Seus pintores (“escritores”) buscam na experiência espiritual feita de jejum, oração e contemplação, a inspiração para deixar-se guiar pelo Espírito que torna sempre mais próximo o mistério de Deus.

Assim acontece com o famoso ícone realizado por Andrej Rublëv em 1442 para a canonização de Sérgio di Radonež, fundador do mosteiro da Trindade de São Sérgio, o centro de espiritualidade mais importante da Igreja ortodoxa russa. Foi-lhe pedido transmitir, através da pintura, um dos grandes sonhos de São Sérgio: a unidade da Rússia ao redor da Igreja.

Só a partir de uma fé vivida em profundidade poderia brotar uma imagem tão forte, apesar de sua aparente simplicidade, como a que temos no seu famoso ícone da Trindade.

Inspira-se certamente na passagem da visita dos três anjos a Abraão no livro do Gênesis, capítulo 18. Sobre esta narrativa bíblica Santo Agostinho escreveu: “tres vidit et unum adoravit” (viu três e adorou um), interpretando este episódio como uma antecipação do mistério trinitário.

Passemos a uma singela descrição do ícone. Três figuras aureoladas sentam ao redor de uma mesa em cujo centro se encontra o cálice, símbolo da Eucaristia. A perspectiva que o pintor assume, sugere que os três interpelam o espectador a tomar parte à mesa. Ao fundo, encontram-se uma casa, a morada de Abraão, o “lugar da Igreja” e um carvalho, uma árvore, talvez a do paraíso, mas também pode ser o lenho da cruz.

Deus Pai é o da esquerda, a olhar o Espírito Santo, que está à direita. O anjo no centro é figura do Filho.

Apesar de não ser tão evidente, os Três fecham com o olhar um círculo, símbolo da perfeição, da eternidade, de um amor sem começo e sem fim, em torno à mesa que tem forma quadrangular como o lugar da criação.

As cores também assumem um papel importante. O ouro é próprio da realeza de Deus e do Filho enquanto sacerdote, a quem também pertence o vermelho, por causa do seu sacrifício. O verde, símbolo de vida, é dom do Espírito Santo. O azul é próprio dos três porque significa a vida eterna.

Ao revelar o seu rosto a Trindade não deseja satisfazer uma curiosidade do ser humano sobre Deus, mas o convida à intimidade de sua vida, a fazer a experiência do seu amor para viver no amor e assim viver o pleno sentido de sua vida nesse mundo.