10 anos de falecimento do Cardeal Dom Lucas Moreira Neves, OP

Dom Murilo S.R. Krieger, scj

Arcebispo de São Salvador da Bahia – Primaz do Brasil

Catedral Metropolitana de Salvador, 08.09.12

10 anos de falecimento do Cardeal Dom Lucas Moreira Neves, OP

 

  1. Uma homilia deve explicar a Palavra de Deus proclamada na Liturgia – e essa Palavra é escolhida pela Igreja em função da celebração do dia. Além da explicação, cabe ao Presidente da celebração aplicar essa Palavra à vida do dia a dia da comunidade.
  2. Reunidos nesta manhã de sábado por causa dos dez anos de falecimento do Cardeal Dom Lucas Moreira Neves, temos, a orientar a nossa reflexão, a Liturgia da Natividade de Nossa Senhora. Como quase todas as solenidades principais de Maria, também a Natividade é de origem oriental. Foi introduzida na Igreja latina pelo Papa oriental São Sérgio I, pelos fins do século VII. Originalmente, devia ser a festa da dedicação da atual basílica de santa Ana, em Jerusalém. De fato, a Tradição indicava esse lugar como a sede da humilde morada de Joaquim e Ana, longínquos descendentes de Davi, pais de Nossa Senhora. Devemos buscar neste culto da Natividade de Maria uma verdade profunda: a vinda do homem-Deus à terra foi longamente preparada pelo Pai. Crer nos preparativos da Encarnação significa crer na realidade da Encarnação e reconhecer a necessidade da colaboração da pessoa humana na salvação do mundo.
  3. Não foi o Cardeal Dom Lucas que escolheu morrer no dia da Natividade de Nossa Senhora. Mas, se tivesse podido escolher o dia de sua morte, creio que consideraria uma graça especial poder terminar os seus dias em alguma festa mariana. Como não lembrar seu amor a Maria, testemunhado perante 100 mil pessoas, reunidas na Fonte Nova, aqui em Salvador, no encerramento do Congresso Arquidiocesano do Coração de Jesus? Dirigindo-se a Maria, ele afirmou: “Para ser Mãe de Jesus Cristo Deus, foste pelo Pai ornada de todos os dons e carismas: Cheia de graça, imaculada desde o primeiro instante da tua conceição e, portanto, Preservada do pecado original e de todo o pecado; Virgem antes do parto, no parto e depois do parto; Elevada ao céu em corpo e alma. Ser Mãe do Verbo e Filho de Deus humanado e, portanto, Mãe de Deus, como te proclamou o concílio de Éfeso, em 431, é tua graça e tua glória primordiais” (“Oração de amor e desagravo”, in Memorial de Fogo e outras crônicas, p. 275).
  4. A passagem evangélica que acabamos de escutar leva nosso olhar para longe. Ela apresenta a história de Israel a partir de Abraão como uma peregrinação que, com subidas e descidas, por caminhos breves e longos, conduz por fim a Cristo. A genealogia de Cristo, com suas figuras luminosas e obscuras, com pessoas santas e pecadoras, nos demonstra que Deus pode escrever direito também pelas linhas tortas da nossa história. Deus nos dá a liberdade e, contudo, sabe encontrar em nossas limitações e fraquezas novos caminhos para manifestar o seu amor. Deus não falha. Assim, esta genealogia é uma garantia da fidelidade de Deus; uma garantia de que Deus continuamente orienta nossa vida para Ele, porque quer que caminhemos sempre de novo para Cristo.
  5. Se nós, desta Igreja Particular de São Salvador da Bahia, estimulados pela genealogia apresentada pelo evangelista Mateus, fôssemos fazer a lista dos Bispos e Arcebispos que estiveram à frente desta Arquidiocese Primaz, teríamos que ressaltar que Dom Lucas Moreira Neves foi o seu 25º Arcebispo, ocupando a cátedra que está nesta Catedral Basílica de 1987 a 1998. Quiséssemos, em seguida, traçar o perfil biográfico deste Cardeal, nos sentiríamos perdidos. O que ressaltar? Suas origens mineiras, vindo de uma família profundamente católica? Seu carisma dominicano, que fazia seu coração se queimar, na ânsia de dedicar-se à transmissão da verdade? Sua atuação, como sacerdote, nas décadas de cinqüenta e sessenta, na Ação Católica – particularmente na JEC e na JUC? Seu interesse pela Pastoral Familiar? Ordenado Bispo, em 1967, dedicou-se particularmente aos leigos, o que certamente levou o Papa Paulo VI a chamá-lo para a Vice-Presidência do Conselho para os Leigos, em Roma. Já o Bem-aventurado Papa João Paulo II o nomeou Secretário da Congregação para os Bispos. Começou, depois – estamos em 1987 -, o período de Salvador, e desse período temos aqui muitas testemunhas. O que ressaltar em sua longa passagem por esta terra e Bahia de Todos os Santos? Sua incansável dedicação, apesar das limitações de sua saúde? As congregações e institutos europeus que trouxe para esta Arquidiocese? Seu cuidado com as vocações sacerdotais? O sábio uso que fez dos meios de comunicação? Seus programas de rádio e seus escritos?A importância que deu à evangelização? Sua atuação à frente da CNBB?… Chamado novamente para Roma, tornou-se um auxiliar direto do Bem-aventurado Papa João Paulo II, pois foi colocado à frente da Congregação para os Bispos – um dos cargos mais importantes na Cúria Romana. E o que dizer de sua devoção e estudos sobre Teresinha de Lisieux? Dos títulos que recebeu de diversas universidades e entidades? De sua eleição para a Academia Brasileira de Letras, onde honrou o nome da Igreja?
  6. Sempre muito ativo, sentiu o quanto as limitações de sua saúde o impediam de fazer o que deveria ser feito. Tendo apresentado ao Papa sua renúncia aos cargos que exercia, recebeu uma bela carta de João Paulo. Nela, entre outras coisas, seu grande amigo, que havia feito questão de visitá-lo aqui em Salvador, em 1991, testemunhava: “Com grande disponibilidade e sem poupar energias, o senhor se prodigalizou no serviço do povo de Deus nas várias funções que lhe foram confiadas, dando sempre prova de grande fidelidade e de alto senso de responsabilidade.”
  7. Já antecipei que não pretendo apresentar, aqui, a biografia deste Bispo que faleceu há dez anos – bispo que tive a alegria de conhecer. Aliás – e foi ele que me lembrou isso -, fui nomeado Bispo Auxiliar de Florianópolis, em 1985, quando ele era Secretário da Congregação para os Bispos. Sou, como muitos de vocês, testemunha de seu amor pela Igreja, de sua coerência e de sua inquietação vendo as dificuldades enfrentadas para a expansão do Reino de Deus.
  8. Nossa presença aqui, nesta manhã, tem, pois, uma dupla finalidade. Em primeiro lugar, pedimos a Deus que dê a Dom Lucas a paz eterna. Depois, queremos agradecer ao SENHOR por este pastor que Ele deu à nossa Igreja Particular. Não só eu, mas todos nos beneficiamos de seus trabalhos, de sua inquietação apostólica e de sua criatividade pastoral.
  9. Termino com a passagem de um das crônicas do Cardeal Dom Lucas, escrita quando celebrava seu jubileu de vida religiosa dominicana. Depois de lembrar que, aos 19 anos de idade, quando lhe foi perguntado pelo Superior o que pedia, o jovem Lucas lhe respondeu: “A misericórdia de Deus”. Cinquenta anos depois, testemunhou: “Celebro o jubileu repetindo em silêncio que o importante é a fidelidade, isto é, saber renovar a consagração da autora no ofertório do anoitecer” (“O Ofertório do anoitecer”, inMemorial de Fogo e outras crônicas”, p. 259). No longo ofertório que foi a vida do Cardeal Dom Lucas Moreira Neves, essas duas palavras – misericórdia e fidelidade – sintetizaram seus sonhos, suas lutas e a razão de sua dedicação alegre e criativa. Em resposta à sua fidelidade, possa este nosso irmão cantar eternamente as misericórdias de Deus.