Recebi este e-mail: “Padre Carlos André, na minha condição de mãe de adolescente, queria que você me dissesse alguma coisa sobre os Evangelhos Apócrifos, mas não algo que conste nas “Wikipédias” da vida. Minha filha está vendo isso em religião e ela questionou porque eles não são aceitos. Meu marido respondeu que vai contra os dogmas da Igreja, citando como exemplo a questão de Jesus com Maria Madalena. Então ela perguntou se eles eram fofocas da Igreja e achando que isso era interessante, disparou: se os padres falassem disso nas missas elas seriam atrativas (rsrsrsrs!)”.
Olá, adoráveis pais de adolescente! Antes de mais nada, quero dizer que adoro as perguntas e respostas dos adolescentes sobre a religião, acho que é uma fase definidora daquilo que vamos crer por boa parte da vida, por isso apresentar com sinceridade e coerência as respostas que eles procuram é muito importante. O problema é que depois de adultos certas questões vão perdendo importância e ficamos perdidos com as velhas respostas que para eles não servem mais… é aquela velha frase, quando aprendi as respostas mudaram-se as perguntas! Bem vamos lá, aos apócrifos!
Vou tentar ajudar sendo bem breve. O que ficar sem resposta poderá nos permitir continuar nosso diálogo. Primeiro, a resposta de seu marido ficou pela metade e por isso se tornou falsa. Não é por que negam algum dos dogmas da fé que os apócrifos são excluídos da leitura na igreja. Até tem apócrifo que apoia dogmas que não são tão fáceis de encontrar na bíblia, como a virgindade de Maria. O problema dos apócrifos é que eles não foram considerados autênticos pelas comunidades que no início do cristianismo deram seu aval à veracidade do que era contado. Como assim? Um pouco de história da formação da bíblia vai nos servir…
Antes que a bíblia existisse como a conhecemos hoje, é preciso saber que os livros eram rolos separados e cada comunidade possuía apenas alguns. No caso dos rolos dos diferentes livros do novo testamento, eles eram conhecidos por causa das correspondências que se operava por meio dos comerciantes e missionários. Por isso, os primeiros livros escritos do novo testamento foram as cartas de Paulo. E os evangelhos, como surgiu os primeiros evangelhos da vida Jesus? Bem, na medida em que as comunidades dos apóstolos foram deixando por escrito o conteúdo de seu testemunho de Jesus, estes pequenos trechos passaram a circular, assim como circulavam as cartas de Paulo, até formar o primeiro evangelho, o de Marcos.
Por sua vez, as comunidades de Mateus, Lucas e João fizeram o mesmo acrescentando seus próprios relatos. Por fim, por volta do ano 100, todos esses relatos, isto é, evangelhos, cartas de Paulo, cartas de outros apóstolos e apocalipse, já circulavam entre as comunidades, num momento em que todos os apóstolos já haviam morrido. Entre as correspondências daquelas comunidades surgiram listas de livros que eram conhecidos nas principais igrejas da época, como Alexandria, Antioquia, Jerusalém e Roma. Estas listas continham os nomes dos livros que formavam a bíblia destas comunidades, significava que se orientavam por ela ao instruir os novos cristãos para o batismo e transmitir o que consideravam autenticamente ser testemunho fiel de Cristo. Assim foi se formando o que chamamos CANON, isto é, “lista” de livros sagrados.
Onde entram os apócrifos? Eles não se encontram nas listas que circulavam nos primeiros séculos, não eram conhecidos por todas as comunidades e nem reconhecidos como autênticos, daí o significado da palavra apócrifo ser “escondido”, “desconhecido” . Não significa que eram secretos, como costuma dizer a mídia em geral. Outro aspecto que se deduz da ausência deles das mais antigas listas de livros considerados canônicos é que provavelmente eles foram escritos depois do tempo em que os apóstolos estavam vivos, portanto são tardios, não refletem o testemunho de nenhum apóstolo, por isso muitas vezes se afastam tanto dos evangelhos chamados canônicos, isto é, aqueles que estão na bíblia.
A partir do que expliquei surge a regra simples: para que um desses livros que circulavam pelas comunidades cristãs dos primeiros séculos seja considerado fiel a Jesus ele precisa cumprir três exigências, 1. ser do tempo dos apóstolos, portanto antigo; 2. ter sido conhecido por todas as igrejas, portanto pertencer às antigas listas; 3. ter sido considerado autêntico em todas as listas que circulavam. Os apócrifos na melhor das hipóteses preenche um requisito mas não os demais. Para resumir tudo isso, uma vez li um comentário de um autor que dizia: “Para perder o total interesse pelos apócrifos basta começar a ler um deles…”.
E quanto à história de Maria Madalena? Esse é um caso daqueles que a nossa adolescente chamou de “fofoca”, rsrsrs. Mas para ser mais preciso, a fofoca se baseia num fragmento de papiro em que se lê Jesus se dirigindo a Madalena como “minha esposa”. Outro apócrifo, o evangelho de Filipe, também sugere que Jesus tinha um “love” com Madalena. Qual o problema desses textos? No primeiro caso, o papiro em questão foi considerado falso por alguns estudiosos, enquanto outros insistem em afirmar sua autenticidade.
No segundo caso, o evangelho de Filipe, ele é dos anos 300, bem depois do tempo dos apóstolos. E pensando que no tempo de Jesus estar solteiro não era algo bem visto pela sociedade, por que os evangelhos autênticos esconderiam a esposa de Jesus? Além disso, na hora da sua morte, Jesus não confiou a Maria Madalena o cuidado de sua mãe, mas a um discípulo. Não seria mais natural que a esposa de Jesus fosse como uma filha para Maria, se ambos formassem um casal, Jesus e Madalena? Bem, talvez eu deva concordar com nossa adolescente, poderíamos nos divertir se nas missas comentássemos as fofocas dos apócrifos, rsrsrs. Quem sabe assim os livros apócrifos deixassem de despertar tanta curiosidade?



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