Confira a homilia proferida pelo Arcebispo de Salvador na Missa do Natal (25)

Catedral Metropolitana de Salvador

Natal de 2019 – 25.12.19 – 10h

Dom Murilo S.R. Krieger, scj

Arcebispo de São Salvador da Bahia

 

 

“No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus; e a Palavra era Deus.” (Jo 1,1). Nesta frase tão curta, temos o fundamento de nossa fé; temos a explicação da encarnação do Filho de Deus aqui na terra; compreendemos a razão de ele ter assumido a nossa carne; temos razões para viver e sonhar.

Aquilo que está no princípio está no fim. Se no reservatório há água, na torneira surgirá água; se no reservatório há água envenenada, na torneira sairá água envenenada. Ora, no princípio, segundo o evangelista João, não há confusão; não há caos; não há o acaso. Há a Palavra. Mas, o que é a palavra? É a expressão de uma pessoa. Falando, a pessoa se apresenta, se expõe, diz quem é. Assim, falando com outros, podemos acolher o outro e dialogar com ele. A palavra é própria do ser humano (os animais não usam a palavra); nós nos comunicamos sobretudo com a palavra. Sem a palavra, não haveria cultura e nem ciência; não haveria progresso. Pois bem, Deus tem uma Palavra, isto é, Ele nos diz quem Ele é. Deus, que é Pai, se expressa não através de palavras, mas de uma Palavra, que é Seu Filho Jesus. Escutar Jesus é, pois, escutar o Pai; entrando em comunhão com Jesus, entramos em comunhão com o Pai. Jesus é a Palavra do Pai. E é essa Palavra que já existia no começo do mundo, no princípio. No Natal, essa Palavra passou a estar no meio de nós.

Dou, agora, um pulo para os tempos de hoje – este ano da graça de 2019. Coloco-me no lugar de um pai de família, envolvido pelos pedidos dos filhos (“O senhor sabe o que quero ganhar no Natal?”), pelas contas a pagar e pelo dinheiro que está escasso, e pergunto-me: como ele vive o Natal?

Procuro entrar no coração de uma mãe para saber como ela vive o natal, e reconheço: não lhe deve ser fácil para ela viver a espiritualidade do Natal. É que precisa cuidar da casa, das refeições do Natal; do bem estar de todos; dos filhos que estão enfermos…

Esforço-me por ver o Natal do ponto de vista de um jovem: envolvido por tantos apelos, da busca de satisfações imediatas, que condições ele tem de fazer no Natal uma experiência marcada pela mensagem de Belém?

Mas, o que significa fazer a experiência do Natal? Para responder, precisamos voltar ao início do Evangelho de João: “No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus; e a Palavra era Deus”. Jesus, a Palavra do Pai, é “a manifestação visível da bondade e do amor de Deus pelos homens” (Tt 3,4). Em Jesus, o Pai se dá a si próprio e demonstra o quanto nos ama. Não nos ama “de longe”, mas aproxima-se de nós em seu Filho, que é o Emanuel, o Deus-conosco. Por meio de Jesus, o Pai grita ao nosso coração: você é muito importante para mim! Jesus é o rosto visível do Pai. Vê-lo, é ver o Pai; aceitá-lo, é aceitar o Pai; amá-lo, é amar o Pai. A verdade precisa ser dita em sua totalidade: recusá-lo, é recusar o Pai. Jesus veio manifestar não o poder de Deus, mas sua bondade. É cativante ouvi-lo falar do Pai. Sem sua revelação, teríamos uma imagem muito pobre e incompleta de Deus. Transmitindo-nos os segredos que conhecia desde toda a eternidade, porque existia com ele desde o princípio, Jesus nos ensina que a vida tem sentido quando nos abandonamos nas mãos do seu e nosso Pai.

No Natal, Jesus vem buscar o que estava perdido. Nele, o Pai vem ao encontro da humanidade ferida, sofrida, prostrada à beira da estrada, como o homem que foi encontrado pelo Bom Samaritano, na estrada que vai de Jerusalém a Jericó. O projeto do Pai é que cada pessoa tenha vida, e a tenha em abundância. Como seu coração ficaria indiferente diante de filhos esmagados? Sei que poderão nascer em seu coração algumas perguntas: e por que Deus não muda o mundo? Por que não acaba com os sofrimentos que nele se multiplicam? Por que nada faz pelas crianças abandonadas? Não darei explicações teológicas para demonstrar que grande parte do mal que existe no mundo é fruto de erros ou omissões humanas e do uso incorreto da liberdade. Lembro, sim, que Deus nos fez para aprendermos a amar e para manifestarmos o amor. Dou um exemplo concreto: Santa Dulce dos Pobres. Ela entendeu que Deus não queria dela explicações para o sofrimento humano; não queria dela desculpas para ficar indiferente diante das necessidades que via; e nem para criticar o mundo. Santa Dulce entendeu que Deus a havia criado para manifestar o amor de Deus; para que, através dela, Jesus manifestasse o seu amor e as pessoas tivessem uma experiência concreta do que é o amor.

“No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus; e a Palavra era Deus”. “Ao entrar no mundo, Cristo diz: …Eis que venho, ó Deus, para fazer a tua vontade” (Hb 10,5-7). Jesus é um filho obediente e disponível. Fez sua a vontade do Pai, mesmo sendo necessário, para sso, morrer na cruz. Viver segundo as exigências do Natal é procurar ter um coração pronto a fazer a vontade do Pai. É perguntar-lhe: o que precisa ser mudado em minha vida? Em minha família? No mundo? Jesus veio ensinar-nos que temos um único Pai; infelizmente, não vivemos como irmãos, não estamos preocupados uns com os outros. Quantos, diante de desafios, escondem-se atrás da indiferença (“Não é problema meu!”) e do egoísmo (“Cada um que cuide de si!”).

Neste Natal de 2019, dando-nos seu Filho, Deus está reafirmando que nos ama e que acredita em nós. Ele acredita em mim e em você! Se lhe for difícil acreditar nisso, faça uma experiência: aproxime-se do presépio, contemple, longa e calmamente, a cena da gruta de Belém. O resto deixe por conta daquele é o Filho de Deus Salvador. Ali você compreenderá melhor o que significam as palavras de S. João: “No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus; e a Palavra era Deus”.