Dom Murilo S.R. Krieger, scj
Arcebispo de São Salvador da Bahia, Primaz do Brasil
Quando se fala sobre “justiça”, nosso pensamento volta-se, normalmente, para a ordem jurídica. Pode até acontecer de a lei ser injusta, mas isso é outro problema. A Moral, quando trata da justiça, tem sobre ela uma visão mais ampla: entende-a como a obrigação de se dar a cada um o que lhe é devido, mesmo se nem sempre esse direito se encontra garantido em alguma lei.
Há, também, o sentido religioso de justiça: refere-se às nossas relações com Deus. Compete-nos, como criaturas, dar-lhe o que Ele tem direito de receber de nós, porque é o nosso Criador.
A virtude da justiça nos obriga a estar atentos à realidade que nos cerca; essa postura nos faz constatar que nosso país se encontra envolvido por alguns problemas, como, por exemplo, as desigualdades sociais. O Brasil figura entre as maiores economias mundiais; quanto aos indicadores sociais, no entanto, ocupa um modesto lugar, próximo do lugar dos países mais pobres.Os contrastes sociais em nosso país são visíveis para qualquer estudioso ou observador, dada a ainda alta taxa de mortalidade infantil, a falta de moradias, a grave situação da saúde, os baixos salários, o desemprego, o subemprego, a desnutrição, as migrações etc. Tais problemas não surgiram por acaso, nem são fruto de um fatalismo cruel; são consequência das estruturas socioeconômicas vigentes no país.
Para a Igreja, que é chamada a estar no coração do mundo para pregar a Boa Nova aos pobres, lutar pela libertação dos oprimidos e proporcionar alegria aos aflitos, a conclusão é lógica: isso não pode continuar! Nossas atividades pastorais enfrentam, consequentemente, um grande desafio: o que fazer para transformar a sociedade, tornando-a mais humana? Afinal, se o Evangelho não ajudar nossas comunidades a construir uma sociedade mais justa e fraterna, muitos se perguntarão: para que ele serve? Em que ele nos ajuda?
Embora a ação pela justiça e a participação na transformação do mundo sejam dimensões essenciais da vida cristã, não é fácil, na prática, encontrar o melhor caminho para superar esses desacertos. Nesse campo, pessoas e grupos têm posições não só diferentes mas, por vezes, antagônicas.
Para alguns, a missão da Igreja é de ordem meramente espiritual: o mundo será mais justo quando os homens se voltarem para Deus. Essas pessoas insistem na diretriz de que a ação da Igreja gira apenas em torno da oração, e não veem razão para os cristãos se preocuparem com problemas políticos, econômicos e sociais.
No outro lado encontram-se os que lutam pela transformação do mundo e clamam por justiça. Para esses, a oração, os sacramentos e as celebrações somente têm valor na medida em que ajudam a alcançar objetivos temporais, imediatos.
Cada um dos extremos tem uma parcela da verdade. Todos, contudo, são chamados a olhar para a Cruz: ela aponta para o alto e para o lado, isto é, para Deus e para os irmãos.
Se tivermos somente hastes verticais, mesmo que forem muitas, não teremos uma cruz; se só tivermos hastes horizontais, também não teremos Cruz alguma. A Cruz, que nasce do encontro da haste vertical com a horizontal, é, além de salvadora e libertadora, símbolo de nossa fé cristã. Abraçá-la e transportá-la com amor não deixa de ser um desafio permanente. Ela nos ensina que é preciso ter uma visão de conjunto e uma grande capacidade de equilíbrio: é necessário rezar e agir quando se deseja construir a justiça. Somente assim daremos ao Criador o primeiro lugar (“Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua mente” – Mt 22,37) e, por causa dele, cada irmão receberá o que lhe pertence por direito (“Amarás o próximo como a ti mesmo” Mt 22,39).