Uma vida no Espírito Santo

Ir. Tomás de Aquino Santos Nonato, Obl. OSB (1)

A cinquentena pascal termina com a grande Solenidade de Pentecostes. Seguindo a cronologia lucana, a Liturgia da Igreja celebra o dom do Espírito Santo cinquenta dias depois da Páscoa como uma dobradiça que fecha o ciclo das grandes celebrações do mistério de Jesus Cristo (Advento/Natal e Quaresma/Páscoa) e abre o tempo comum, o tempo da vivência ordinária da vida da Igreja. Já aqui a Igreja nos quer lembrar uma verdade fundamental da experiência cristã: é no Espírito Santo que o cristão vive e só uma vida no Espírito Santo pode ser digna do nome de vida cristã.

O Espírito Santo é o grande dom pascal do Ressuscitado. Para São João, o dom do Espírito está ligado intimamente ao sacrifício pascal de Cristo: ao morrer na Cruz, Jesus “entregou o espírito” (Jo 19,30) e, ao aparecer aos apóstolos na tarde do domingo da Páscoa, “soprou sobre eles e lhes disse: recebei o Espírito Santo” (Jo 20,22-23). A tradição lucana localiza o dom do Espírito Santo na Festa de Pentecostes (2) na qual os judeus celebravam o dom da Lei, lembrando-nos que “é pela graça do Senhor Jesus que nós cremos ser salvos” (At 15,11), que não estamos “debaixo da Lei, mas sob a graça” (Rm 6,14).

O Espírito Santo é a graça de Deus por antonomásia. Viver no Espírito Santo é viver na graça de Deus e essa graça se manifesta na intimidade com o Senhor, no deixar-se guiar pelo sopro do Espírito nas mais diversas situações da vida. Não se trata de uma vida especial, marcada por eventos extraordinários, muito menos privada de sofrimento e de dor. Ao contrário, a vida no Espírito Santo, que é a vida na graça, é uma vida em que a realidade, por vezes dura e complexa, é transformada pela presença do Espírito do Ressuscitado que nos faz viver já agora a dinâmica do Reino de Deus, a dinâmica do Céu. A paz, a alegria, o amor e o perdão expressam de modo supereminente essa dinâmica do Reino de Deus que nos conduz na vida no Espírito Santo e estão encapsulados no dom do Espírito Santo que o Ressuscitado nos fez.

Muito sabiamente, a liturgia da Igreja nos lembra que “o mundo inteiro exulta de alegria pascal” (Cf. Prefácio da Ascensão do Senhor II). Ora, essa alegria pascal não é outra coisa senão o Espírito do Ressuscitado, o Espírito Santo que o Senhor nos entregou na Páscoa e que nos inunda. O mundo novo recriado por Deus com a Ressurreição de seu Filho é um mundo em que o Espírito Santo preenche todos os recantos e novamente paira sobre toda a existência (Gn 1,2). Nesta vida, vivemos nesses dois mundos que colidem: o novo mundo que exulta no Espírito Santo e o velho mundo que, com as obras caducas do pecado, definha como o ramo que, descolado do tronco, perde o influxo da seiva que lhe sustentava a vida: o cristão, inserido nesse novo mundo no Batismo, é um semeador dessa vida da graça entre os homens, contagiando os circundantes com a alegria e paz da vida no Espírito; o cristão, porém, que se deixa seduzir pelo mundo velho, abandonando o Espírito Santo que lhe foi infundido no Batismo, reduz o influxo da graça em sua vida e se afasta da fonte da verdadeira paz e alegria.

Os tempos difíceis em que vivemos são uma ocasião singular para reaprendermos a beleza da paz que advém, como dom do Ressuscitado, da vida no Espírito. 

“A paz esteja convosco!” (Jo 20,21). A saudação pascal pascal do Senhor na tarde daquele dia, que a Igreja inseriu na Sagrada Liturgia para que experimentássemos a cada Eucaristia a realidade de vivermos no novo mundo recriado por Deus no influxo de seu Espírito pela Ressurreição de seu Filho, é também um sinal do dom de si, dom de seu Espírito, que o Senhor nos faz.

Na tradição judaica, a paz (שלום [transliterado shalom]) tem um significado muito profundo e denso que transcende muito o sentido de paz como ausência de guerra, como tranquilidade. Como Jesus e as primeiras comunidades cristãs bem sabiam, shalom é o estado de perfeita união com o Deus. A tradição talmúdica chega a afirmar: “o nome de Deus é Shalom”, seguindo Jz 6,24 em que Gedeão afirma que “Adonai é Shalom”. É nesse contexto religioso e cultural, no qual שלום (shalom) é um dos nomes divinos, que o Senhor saudou os discípulos depois da Ressurreição com a paz. Aqui não se trata de mero cumprimento, mas de verdadeiro dom de si para os seus. Ao dizer àquela primeira comunidade cristã, e a nós através dela, “a paz esteja convosco”, o Senhor está nos doando a sua própria presença, está nos infundindo seu próprio Espírito, o Espírito Santo que “procede do Pai e do Filho” (Cf. Credo Niceno-constantinopolitano), a paz que é Ele mesmo no mistério inefável da Trindade. Essa infusão pentecostal, por assim dizer, que o Senhor Ressuscitado fez sobre a comunidade na tarde da Páscoa, a Igreja continua a repeti-la em cada Eucaristia pela boca do sacerdote in persona Christi Capitis e pela boca de cada cristão que se saúda fraternalmente: “a paz do Senhor esteja contigo”. A cada Eucaristia, é novamente Páscoa e encontramo-nos todos reunidos em torno do Ressuscitado que nos dá a sua paz.

Viver a vida no Espírito é, portanto, viver nessa paz que é o próprio Deus: quem vive em Deus, vive na paz porque Deus é a paz. Os santos, especialmente os mártires, fizeram essa experiência de forma singular: nada arranca a paz de quem vive inserido na vida d’Aquele que é a Paz. No meio das maiores angústias e sofrimentos, o cristão que fez a experiência de mergulhar na vida do Espírito Santo percebe que a sua paz é realmente diversa da paz deste mundo; que sua paz reside em sua união com o Senhor; que verdadeiramente pode repetir com Gedeão: “Deus é paz”.

Que o Espírito Santo, o dom pascal do Ressuscitado que recebemos no Batismo e continuamos a receber inúmeras vezes na vida sacramental, transforme a nossa vida em verdadeira vida no Espírito para que possamos trilhar os caminhos deste mundo no amor, exultando de alegria pascal, sendo presença de paz para todo ser humano. Assim, porque cremos nessa vida no Espírito, em meio às incertezas e sofrimentos de nosso tempo, a todos saúdo com alegria: “graça e paz a vós da parte de Deus nosso Pai e do Senhor Jesus Cristo” (Gl 1,3). Amém!

 

 

(1) Oblato Secular Beneditino da Arquiabadia de São Sebastião da Bahia, Congregação Beneditina do Brasil

(2) Entre as grandes festas do calendário judaico estava a Festa das Semanas (שבועות [transliterado shavuot]) também chamada de Festa das Colheitas ou Festa das Primícias. Era celebrada sete semanas depois dos Ázimos conforme o Livro do Êxodo. Por causa desse período de cinquenta dias, a Septuaginta deu-lhe o nome de Πεντηκοστή (transliterado Pentecosté) que foi assumida pelo Atos dos Apóstolos e pela tradição cristã desde então. Originalmente uma festa da colheita dos cereais, ganhou o sentido de celebração do dom da Lei a Israel no deserto por volta de 1300 a.C. Era celebrada com grandes peregrinações a Jerusalém.