
A Igreja no Brasil está se preparando para dar início à Campanha da Fraternidade 2017, que este ano tem como tema “Fraternidade: biomas brasileiros e defesa da vida” e como lema “Cultivar e guardar a criação” (Gn 2, 15). Para melhor compreender a proposta, a equipe da Pastoral da Comunicação da Arquidiocese de Salvador preparou uma entrevista com o filósofo, teólogo e membro da Pastoral da Terra, Roberto Malvezzi, conhecido como Gogó. Confira!
Pastoral da Comunicação (Pascom) – Você é formado em filosofia, teologia e estudos sociais, mas tem destaque como pessoa atuante na Pastoral da Terra. Baseado em seu conhecimento sobre meio ambiente, o que pode destacar sobre o tema da Campanha da Fraternidade desse ano?
Roberto Malvezzi (Gogó) – A Campanha da Fraternidade de 2017 é sobre os biomas brasileiros. “Bio” vem do grego e quer dizer “vida”. “Oma” também vem do grego e quer dizer “grupo, estrutura, etc.”. Então, bioma é um grupo de seres vivos, animais e vegetais, que ocupam um determinado espaço, de forma contínua, sob um clima semelhante, assim como o solo e o relevo. Dessa forma, oficialmente o Brasil tem 6 biomas muito claros: Mata Atlântica, Cerrado, Amazônia, Caatinga, Pampa e Pantanal. Há cientistas que falam em 7, colocando os manguezais, a costa como um específico. Outros falam em 8, colocando os mares brasileiros com suas ilhas como mais um. Entretanto, a CF vai trabalhar a questão conforme o que está padronizado oficialmente pelas autoridades brasileiras
Pascom – Mais uma vez a Campanha da Fraternidade traz à tona a questão do cuidado com a natureza. Porque ampliar a questão?
Gogó – A questão ecológica é global e grave. Não é por acaso que o Papa Francisco fez uma carta como a LaudatoSí. O Brasil é um país chave na questão ambiental do nosso planeta. Ainda mais, para Francisco os cristãos têm uma responsabilidade aí derivada da fé, no sentido de cultivar e guardar a criação (Gen 2,15). Então, a destruição dos biomas, portanto da vida, em território brasileiro é um desafio de todos os brasileiros, mas os cristãos têm aí uma responsabilidade derivada da fé, que tem que ser integral. Para isso, precisamos de uma verdadeira “conversão ecológica”. Daí a insistência de tantas campanhas sobre essa temática que Francisco chama de socioambiental, porque inclui os desafios sociais e ambientais no âmbito de uma mesma crise.
Pascom – Qual o objetivo da CF desse ano?
Gogó – O objetivo geral escrito no texto básico é: “Cuidar da criação, de modo especial dos biomas brasileiros, dons de Deus, e promover relações fraternas com a vida e a cultura dos povos, à luz do Evangelho”. Especificamente nos pede um maior conhecimento de cada bioma, o cuidado com eles, a denúncia de tudo e todos que os destroem, demanda o empenho de toda sociedade para que eles sejam preservados para o bem das atuais e futuras gerações, retoma o saneamento básico para o meio urbano e quer ser um alerta sobre o desastre socioambiental que a civilização brasileira – parcela da mundial – está preparando para nossos descendentes.
Pascom – O que são os biomas citados no texto base da campanha deste ano, e porque tais regiões foram escolhidas para ter destaque na campanha?
Gogó – Já comentamos acima o que são os biomas e sua importância, essa imensa diversidade de vidas que está no território brasileiro. Eles foram escolhidos porque são eles oficialmente que formam o conjunto de vidas que temos e eles é que temos o dever de cuidar e cultivar.
Pascom – Dentre os problemas destacados pelo texto base da CF estão o trabalho escravo, o desmatamento, as disputas por terras, a exploração do solo, a poluição, a exploração e a destruição de florestas, rios e mares. Como a campanha sugere que lidemos com essas questões?
Gogó – O AGIR dessa CF é bastante longo e detalhista. Mas, não foram inventados. São lutas que já acontecem nesse país, particularmente a partir das vítimas dessa destruição. Então, foi proposto um AGIR geral, que inclui o desmatamento zero, a recuperação das áreas degradadas, a recuperação da cobertura vegetal e florestas, a retomada dos planos municipais de saneamento básico, assim por diante.
Depois, há o AGIR específico para cada bioma. Nós, no Nordeste, temos mais especificamente a Mata Atlântica e a Caatinga. Então, para a Caatinga temos a proposta de apoiar e intensificar a “convivência com o Semiárido’, através da captação da água de chuva para beber e produzir, da agroecologia adaptada, da exploração da energia solar e eólica pelas famílias e comunidades, assim por diante.
Na Mata Atlântica, o mais agredido de nossos biomas, preservar o que resta, esforçar para reflorestar o que foi destruído, recuperar nascentes, insistir nos planos municipais de saneamento, assim por diante.
Para todos, reconhecer os direitos das populações ancestrais que aí vivem, como índios, pescadores, quilombolas, camponeses, tec.
Pascom – O texto base também apresenta uma reflexão dos papas a respeito da questão ecológica. Como a Igreja espera que o meio ambiente seja tratado a partir dessa reflexão?
Gogó – A consciência da questão ecológica não começou na Igreja. Ela veio da sociedade civil, quando se deu conta que o modelo de civilização estava esgotando os bens naturais da Terra. Entretanto, a questão ecológica, ou socioambiental como desde sempre entendemos, primeiro esteve nas bases da Igreja, só depois chegou ao Vaticano. Desde 1979 o Brasil já fala dessas questões em nossas Campanhas. Conheço bastante da Igreja Latinoamericana e o Equador, Bolívia e outros países já estão envolvidos com essas questões há tempos. Faltava uma palavra oficial da Igreja. Outros papas já tinham assinalado para a questão, mas Francisco faz um documento especial e único na história da Igreja, que se chama Laudato Si’. Então, a partir de Francisco, a questão ecológica passa a ser uma dimensão integrada e integrante de nossa fé. Essa é a diferença essencial, o salto de qualidade.
Pascom – O bioma da restinga é um bioma exclusivamente do nordeste? Como a Campanha da Fraternidade deste ano pode aguçar o olhar político para essa região?
Gogó – Não há o bioma restinga. Para alguns autores a zona costeira com seus manguezais – tantos detalhes biológicos e paisagísticos aí existentes – deveria ser um bioma. Oficialmente não é. Então, os manguezais, a restinga, etc., estão incluídos oficialmente no bioma Mata Atlântica.
Pascom – O que pode nos falar sobre o ver, julgar e agir destacados no texto base da campanha?
Gogó – É um velho e bom método da Igreja trabalhar. Primeiro, analisar a questão. Segundo, iluminar essa realidade pela palavra de Deus e pelos ensinamentos do Magistério da Igreja. Terceiro, agir, fazer, para tentar modificar a realidade para melhor.
Claro que, nesse processo, a reflexão avança para além do que já foi estabelecido, provoca, convoca. Foi assim que a Igreja Latinoamericana tanto contribuiu nessas questões socioambientais com a Igreja de todo mundo. Não só, com todos os homens e mulheres que tem a boa vontade da paz e da justiça.
Além do mais, Francisco acrescenta mais um passo no método. Ele quer que nós, além de vermos a realidade, de tentarmos entende-la à luz da fé, de agira, também celebremos o que acontece. Então, agora, o método é ver-julgar-agir-celebrar.
Pascom – No dia 19 desse mês a ASA – Ação Social Arquidiocesana, promoverá um seminário sobre a campanha e terá você como mediador. Sobre o que trata os seminário e qual será sua participação?
Gogó – Pela programação que recebi será bem amplo, com participação de pessoas da sociedade civil, inclusive autoridades do governo, do Ministério Público, etc. Interessante. Nosso dever é também motivar e desafiar os demais setores da sociedade para uma causa que é de todos.
Pascom – Qual a importância de promover um seminário como esse? Até que ponto conseguimos conscientizar as pessoas sobre a questão do meio ambiente?
Gogó – Esses seminários cumprem o papel da motivação inicial, despertar os cristãos, outros setores da sociedade para as tarefas que se colocam. Elas são gigantescas, mas sempre temos que dar o primeiro passo. Além do mais, essa questão já vem sendo tratada de outras formas, agora se coloca nesse prisma dos biomas.
Pascom – Como a Campanha da Fraternidade desse ano impacta na atuação da Pastoral da Terra?
Gogó – A Comissão Pastoral da Terra sempre teve os olhos voltados para o povo do campo e seus direitos, particularmente o direito à terra para nela viver e trabalhar. Sempre lutou contra essas injustiças perpetradas contra os pobres do campo. Mantem-se fiel ao “Deus dos pobres e aos pobres da terra”. Então, essa questão mais ecológica, da importância das florestas, da água, dos solos, da biodiversidade para os camponeses, foi sendo assimilada aos poucos. Hoje está presente na leitura de mundo que a pastoral faz.
Outra pastoral importante nessa questão é o Conselho Pastoral dos Pescadores, o CPP, que sempre teve os olhos voltados para as águas, seja dos rios, das praias, dos mangues, por conta das atividades dos próprios pescadores e pescadoras.
Temos ainda que enfatizar o papel do Conselho Indigenista Missionário, o CIMI, que defende as nações indígenas e seus territórios.
A Cáritas também tem um pé nessa realidade. Essas pastorais do campo têm se reunido e construído uma agenda comum em defesa dos povos do campo.
Entretanto, a questão urbana é fundamental nessa CF. A tendência é que as pessoas que moram em grandes centros urbanos achem que residem em outro planeta, não na caatinga ou outro bioma. Salvador é uma cidade situada no coração do que era a Mata Atlântica e no sul da Bahia, com a chegada dos portugueses, foi onde começou a civilização predatória que temos até hoje.
É um momento de encruzilhada da civiliza mundial, incluindo obviamente nós do Brasil. Francisco diz que se a reação tardar, será tarde demais. Então, é a hora.


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