Onde estava Deus?

Desde que o copiloto alemão Andreas Lubitz jogou o Airbus A320 contra os Alpes franceses, multiplicaram-se perguntas sem respostas. “Por quê?”, perguntaram os parentes das outras 149 pessoas que estavam a bordo; “Por quê?”, perguntaram psicólogos, psiquiatras e jornalistas. O problema é que quem poderia responder não está mais aqui. O piloto, impedido de retornar à cabine, fez um apelo dramático, que também ficou sem resposta: “Pelo amor de Deus, abra a porta!”.

“Pelo amor de Deus!” Essa invocação me fez lembrar algumas perguntas feitas pelo Papa Bento XVI, em 2006, ao visitar o campo de concentração de Auschwitz – símbolo do que de pior produziu o regime nazista. Ali, tendo diante de si inúmeras cruzes, que lembravam mortos de várias nacionalidades, o Papa perguntou: “Onde estava Deus naqueles dias? Por que ele silenciava? Como pôde tolerar este excesso de destruição, este triunfo do mal?” As reações a tais questionamentos foram imediatas, e em vários tons: alguns o ridicularizaram, não entendendo tais perguntas na boca de um papa; outros o condenaram com palavras ácidas. Houve também quem procurou ler todo o seu discurso e descobriu que as perguntas do Papa  eram “retóricas”: o orador as lança para despertar o interesse do ouvinte. A partir delas, expõe suas ideias sobre o tema. Os salmistas, no Antigo Testamento, usavam muito esse recurso – por exemplo: “Desperta, Senhor, por que dormes? Desperta e não nos rejeiteis para sempre. Por que escondes a tua face e te esqueces de nossa miséria e tribulação?” (Sl 44/43,24-25)

As perguntas em Auschwitz foram como que um pedido a Deus para que impulsionasse os homens a se arrependerem; para que os seres humanos reconhecessem que a violência não cria a paz, mas apenas faz nascer uma espiral de destruição – e, com ela,  todos perdem. O Papa terminou suas reflexões rezando o salmo 23(22), como a dizer: Deus está em toda parte como bom pastor; se lhe permitirmos, Ele nos conduzirá por caminhos retos. Quanto ao pedido do piloto – “Pelo amor de Deus!” -, foi no sentido de que a razão suplantasse a loucura, e o amor tivesse a última palavra. As palavras registradas na caixa preta do avião que se chocou com os Alpes atestam que, nos últimos momentos, Deus foi invocado em vários idiomas pelos passageiros.

Por que Deus não reagiu num e noutro caso? Por que não interveio para impedir o sofrimento e a morte de inocentes? Onde Ele estava? Ele estava na liberdade das pessoas envolvidas. Tivesse criado os seres humanos sem a liberdade de agir ou não agir, de fazer isso ou aquilo, o mal não existiria; também não existiria o bem. Seríamos “robôs”; só faríamos gestos programados; não seríamos, pois, capazes de amar.

A possibilidade de escolher entre o bem e o mal abre imensos horizontes para nós: tanto podemos crescer em perfeição como podemos definhar; podemos nos realizar humanamente ou nos empobrecer – só que ninguém cresce ou se empobrece sozinho.

Se Deus fosse intervir cada vez que alguém opta pelo mal, sua atuação no mundo seria contínua. Com isso, estaria eliminada a nossa liberdade. Ser livre significa, pois, ser responsável. Somos responsáveis por nossas escolhas e decisões; somos responsáveis pelas consequências do que fazemos. Entende-se, pois, a proposta que nos é feita pelo Senhor: “Eu vos propus a vida e a morte, a bênção e a maldição. Escolhe, pois, a vida, para que vivas, tu e teus descendentes” (Deuteronômio 30,19).

Onde estava Deus? Ele estava e está no coração das pessoas. Convida-nos a amá-lo e a amar os outros, pois só o amor nos torna livres.

Dom Murilo S.R. Krieger, scj

Arcebispo de São Salvador da Bahia e Primaz do Brasil