Uma dor universal

Dom Murilo S. R. Krieger, scj

Arcebispo de São Salvador da Bahia e Primaz do Brasil

 

Dia 14 de julho a França comemorava uma data importante: o aniversário da queda da Bastilha, que marcou o início da Revolução Francesa (ocorrida em 1789). De repente, nas emissoras de rádio e televisão de todo o mundo, os programas foram interrompidos para anunciar uma ação terrorista. Mais uma – dessa vez em Nice, naquele país. À noite, os noticiários foram mais extensos: as cenas de um enorme caminhão passando por cima de uma multidão entraram em nossas casas. Os jornais do dia seguinte deixaram de lado as tradicionais manchetes políticas. Fotógrafos e cinegrafistas documentaram inúmeras cenas: o corre-corre de bombeiros e médicos e a solidariedade que brotou imediatamente. Mãos foram estendidas para pessoas que choravam desconsoladas. Completando as fotos do massacre, liam-se perguntas sobre as motivações que teria seu autor para um ato tão brutal. Numa noite que deveria ser de festa e alegria, nasceram a tristeza, a dor e a perplexidade.

Por causa de uma atitude marcada por uma frieza que choca, dezenas de vidas foram tragicamente ceifadas. Com os que morreram, morreu todo um mundo. Um grande mundo desconhecido, feito de esperanças, de sonhos e de planos não arquivados.

Peritos analisarão o caminhão e as armas usadas, sociólogos procurarão entender a razão de um ato tão insano, assistentes sociais, religiosos e voluntários se debruçarão sobre as feridas que ficaram abertas no coração de muitos. No mundo inteiro, repete-se a mesma pergunta: até quando teremos que conviver com atos de tamanha violência e desumanidade?

Pouco se sabe dos últimos instantes dos que tiveram, de repente, suas vidas interrompidas. A maioria nem teve consciência do que aconteceu. Se tivessem previsto o que iria ocorrer; se, ao tomar conhecimento do perigo que corriam, tivessem tido tempo e condições para rever suas ideias e projetos, o que pensariam? Que atitudes tomariam? Que olhar teriam lançado para a própria vida? É difícil prever como passariam a agir, se pudessem escapar da morte e continuar a vida normalmente (normalmente?…).

Um ação terrorista espalhou pelo mundo dor, sensação de insegurança e medo. Não se consegue restituir a vida aos que faleceram. Não é possível penetrar no mundo que morreu com eles. Mas teremos uma sábia atitude se um acontecimento assim, tão trágico e doloroso, fizer nascer em nosso coração um compromisso e uma prece.

O compromisso: vamos construir pontes. Num mundo que se globaliza cada vez mais, nos campos econômico e cultural, há necessidade de espalharmos sementes de diálogo e solidariedade. Não podemos continuar vendo o desconhecido como um potencial inimigo; não podemos obrigar todas as pessoas a pensarem como nós pensamos; ninguém tem direito de exigir que os demais tenham sua própria visão religiosa. Não se trata de propósitos para grandes momentos; é necessário, sim, cultivar tais valores em nossa casa, nas ruas de nosso bairro e em nossa cidade. Afinal, guardadas as devidas proporções em relação aos acontecimentos na França, a violência não se está tornando “normal” em nosso dia a dia?…

A prece poderá ser semelhante a esta, baseada no que se lê no livro da Sabedoria, capítulo 9: “Senhor da misericórdia, que criaste o ser humano para dominar as criaturas e governar o mundo com santidade e justiça, dá-nos a sabedoria que se assenta contigo no teu trono. Sou teu servo, homem frágil e de vida breve, e incapaz de compreender a justiça e as leis. Contigo está a sabedoria que conhece as tuas obras e que estava presente quando fazias o mundo; ela sabe o que é agradável aos teus olhos e o que é correto conforme os teus preceitos. Manda-a dos teus sagrados céus, para que me acompanhe e trabalhe comigo e eu saiba o que é agradável diante de ti!”.