Marcelo Couto Dias*
Nenhum observador atento à realidade pode negar o fato de que propostas contrárias à família surgem constantemente nos diferentes setores da sociedade: centros acadêmicos, parlamentos, governos, meios de comunicação etc. A ânsia por “transformar a realidade” é generalizada. Porém, isso não basta para explicar a crise da família…
A influência do poder é proporcional à nossa impotência. O sacerdote italiano Dom Luigi Giussani recorda em uma de suas obras que “nenhum resultado humano pode ser imputado exaustivamente a meras circunstâncias exteriores, posto que a liberdade do homem, apesar de enfraquecida, permanece marca indelével da criatura de Deus”[1]. Assim, a crise da família, desejada e projetada por aqueles que creem possuir a receita de um mundo melhor, se realiza graças à confusão acerca da natureza humana experimentada pelos homens e mulheres do nosso tempo. Ou seja, a crise da família está relacionada a uma crise antropológica.
Bento XVI, falando à Igreja de Roma, lembrou que “a questão da justa relação entre o homem e a mulher afunda as suas raízes dentro da essência mais profunda do ser humano e pode encontrar a sua resposta só a partir dela. Isto é, não pode estar separada da pergunta antiga e sempre nova do homem sobre si mesmo: quem sou? O que é o homem?”[2].
Assim, uma necessidade fundamental daqueles que desejam viver um matrimônio feliz é pertencer a uma realidade capaz de ajudá-los a encontrar a resposta adequada a esta “pergunta antiga e sempre nova”. Do contrário, correrão o grande risco de esperar do outro algo que ele não pode dar. Esse engano, esperar que o tu torne feliz ou eu, está na origem da decepção vivida por tantos homens e mulheres frente ao matrimônio, ao ver que o outro não cumpre aquela expectativa. Daí o escândalo de muitos diante da doutrina da Igreja acerca da indissolubilidade: como impedir uma pessoa de tentar encontrar em outro tu aquilo que não encontrou no anterior? A questão é que mesmo se fizermos 7 tentativas (para usar o número que na Bíblia significa a totalidade, a perfeição) ainda assim não lograremos êxito. Afinal, só há um Tu capaz de nos realizar plenamente.
Mais uma vez, Bento XVI nos ajuda. “Dizer que ‘a natureza do homem é relação com o infinito’ significa afirmar que cada pessoa foi criada para poder entrar em diálogo com Deus, com o Infinito. […] Não só a nossa alma, mas todas as fibras da nossa carne foram criadas para encontrar a sua paz, a sua realização em Deus”[3]. Aqui chegamos a um ponto que tem a ver com a novidade do cristianismo. Para que não ficasse estruturalmente impossível ao homem viver à altura da sua própria natureza “o próprio Infinito para que se tornasse resposta que o homem pudesse experimentar, assumiu uma forma finita. A partir da Encarnação, o momento no qual o Verbo se fez carne, a distância incomensurável entre finito e infinito extinguiu-se: o Deus eterno e infinito deixou o seu Céu e entrou no tempo, ingressou na finitude humana.”[4]
Mas a essa altura cabe a pergunta: qual será, então, o sentido do amor entre um homem e uma mulher, do matrimônio?
A partir da encarnação do Verbo, “cada aspecto, relação, alegria, e dificuldade, encontra a sua razão última no ser ocasião de relação com o Infinito, voz de Deus que continuamente nos chama e convida a erguer o olhar, a descobrir na adesão a Ele a realização plena da nossa humanidade”[5].
A relação amorosa contribui de maneira particular para que a pessoa descubra a verdade do eu, que é também a verdade do tu: feitos para o infinito. A relação com a pessoa amada revela esse grande mistério que é o nosso ser. O outro nos torna consciente do desejo de felicidade, de plenitude, que nos constitui. Sua presença nos ajuda a perceber a dimensão desse desejo. Ou seja, a relação com a pessoa amada nos remete para este destino infinito para o qual fomos feitos: Deus.
Atenção: a relação com a pessoa amada revela, mas não é suficiente para realizar este mistério, o desejo infinito que constitui cada ser humano. Sobre esse aspecto, a Amoris Laetitia recorda que “o princípio do realismo espiritual faz com que o cônjuge não pretenda que o outro satisfaça completamente as suas exigências. É preciso que o caminho espiritual de cada um o ajude a ‘desiludir-se’ do outro, a deixar de esperar dessa pessoa o que é próprio apenas do amor de Deus”[6].
A relação com a pessoa amada nos ajuda a descobrir que o nosso destino é Deus, que é amor, e o Sacramento do Matrimônio nos dá a possibilidade de começar a viver este destino agora, pois “o sacramento não é uma ‘coisa’, nem uma ‘força’, mas o próprio Cristo [que] vem ao encontro dos cônjuges cristãos”[7].
[1]GIUSSANI, Luigi.Por que a Igreja. Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2004.p. 66.
[2] BENTO XVI. Discurso na abertura do Congresso Eclesial Diocesano. Roma, 6 de junho de 2005.
[3] Idem. Mensagem aos participantes do XXXIII Meeting para a amizade entre os povos. Castel Gandolfo, 10 de agosto de 2012.
[4] Ibidem.
[5] Ibidem.
[6] PAPA FRANCISCO. Amoris Laetitia: sobre o amor na família. São Paulo: Paulinas, 2016. §320.
[7] Ibidem. §73.



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