Confira o artigo de Dom Murilo dessa semana – Marcados para morrer

Tenho, por vezes, a impressão de que nossos jornais e noticiários de TV reservam um espaço diário para as tragédias de trânsito. Variam os locais dos acidentes e são diferentes os horários e as circunstâncias em que ocorrem; também não coincide o número de envolvidos ou o saldo de mortos e feridos. Mas as notícias de capotamentos, batidas e acidentes se renovam, numa repetição que seria monótona, se não fosse trágica.
Sucedem-se reportagens sobre as condições das estradas e o comportamento dos motoristas. Há aquelas que acentuam mais a falta de segurança nas rodovias; outras, a inexistência de um mínimo de sinalização que dê tranquilidade aos que viajam de dia ou em noites de chuva; a maioria das reportagens se referem, contudo, à imprudência daqueles que se julgam verdadeiros pilotos da Fórmula 1, constituindo-se numa constante ameaça aos demais motoristas das rodovias ou avenidas de nossas cidades.
Os números e os pormenores a respeito dos acidentados são crueis. As estatísticas não se resumem mais ao número de mortos num determinado período: começamos a ser informados sobre o número daqueles que morrerão até o final do ano em curso ou dos próximos anos. Há o perigo de nos familiarizarmos com os quadros que nos mostram quantos estão marcados para morrer, como se isso fosse inevitável. O pior de tudo é que a realidade tem superado tais previsões: o número de acidentes, de mortos e feridos tem sido acima das expectativas mais pessimistas.
Sabe-se que há, realmente, muito de imprudência por trás de tais números. Basta transitarmos um pouco por nossas cidades ou rodovias para nos convencermos de que é necessária uma reeducação para o trânsito. Tem-se, por vezes, a impressão de que já que não conseguiram fazer tudo o que haviam planejado, muitos motoristas querem, a todo o custo, superar os limites impostos pelo tempo e espaço. À medida que desrespeitam as mais elementares leis de trânsito, põem em perigo não só suas próprias vidas – o que já seria de se lastimar –, mas também as de inúmeros inocentes, que nada têm a ver com as tensões e a pressa de motoristas imprudentes.
Viajar, por vezes, significa arriscar-se, enfrentando perigos que se renovam. Quem tem fé, mais do que oferecer sua viagem ao Senhor da Vida sente que é preciso oferecer a vida ao Senhor da História, porque não sabe o que o aguarda nos momentos seguintes. Um dos personagens de Guimarães Rosa dizia que “Viver é muito perigoso”. Não é possível imaginar o que tal personagem diria se, saindo do interior de Minas Gerais e deixando de lado mula, palheiro e companheiros de prosa, conhecesse nossas estradas e avenidas.
Soube que, tempos atrás, numa determinada rodovia, todos os carros tiveram que parar. Foi perguntado a um homem que, a pé, vinha em sentido contrário, o que teria acontecido. Com a naturalidade de quem vira algo que lhe era comum, respondeu secamente: “Um desastre. Morreram quatro.”
“Morreram quatro!” Um número. Um dado para as estatísticas. Se tivessem sido dois, três ou seis, parece que seria a mesma coisa. Temos a terrível capacidade de nos acostumar com a desgraça alheia.
Por trás dos números, porém, há nomes, idades e histórias. Há pais que passarão a chorar o resto de suas vidas a dor de um filho que não mais voltará para casa. E a esposa que verá, de repente, a destruição de tantos sonhos? E o olhar perdido de filhos, à espera de alguém que lhes diga que foi engano, que papai voltará e poderá, então, brincar com eles?…
Há necessidade de um verdadeiro mutirão, do qual participem autoridades, políticos, comerciantes, estudantes e operários, adultos e jovens – mutirão que, diante do triste quadro de nosso trânsito, procure dar uma resposta à pergunta: O que podemos fazer para mudar essa situação?
Não podemos é ficar indiferentes diante de frias estatísticas, aguardando a confirmação ou não do número daqueles que foram marcados para morrer no próximo carnaval, na festa de São João ou num outro feriado qualquer de nosso calendário…

Dom Murilo S.R. Krieger, scj
Arcebispo de São Salvador da Bahia, Primaz do Brasil