Por professor Carlos André da Cruz Leandro
Universidade Católica do Salvador (UCSal)
A leitura da Bíblia oferece ao leitor dificuldades naturais por se tratar de um livro que tem uma história complexa. Por isso, mesmo depois de várias tentativas, é comum se ouvir lamentações: não entendo, é difícil de ler, a Bíblia é complicada, não consigo. Então, para começar nossa conversa, vamos separar alhos de bugalhos, ou como prefere Jesus, joio de trigo!
É sempre mais fácil começar a definir algo pelo que ele não é, então vamos começar dizendo que a Bíblia não é Palavra de Deus! Hã? Desculpe-me se essa frase, dita dessa forma, parece chocante. Mas, é isso mesmo que você leu, a Bíblia não poderia se identificar com a Palavra de Deus, muito menos sem antes conceber claramente a dimensão humana que a constitui. Mas para entender melhor, é mais apropriado começar conceituando a Palavra de Deus enquanto manifestação divina na história, de modo que na vida e na obra de Jesus temos a revelação por excelência dessa comunicação divina. Neste sentido, a Criação inteira pode ser “lida” como uma Palavra amorosa de Deus. Por outro lado, na medida em que a Bíblia reflete a experiência de homens e mulheres que reconheceram a presença amorosa de Deus no mundo, ela testemunha a Palavra de Deus e se torna convite a fazer o mesmo percurso. Por isso, a Palavra de Deus é muito maior do que a Bíblia. Assim como dizemos “Deus é mais”, a sua Palavra também é mais do que um livro pode conter.
Uma vez compreendido isso, fica mais fácil aceitar que a Bíblia não é um livro de regras para bem viver; não é uma obra de historiografia, nem é um livro “caído do céu”, saído pronto direto das mãos de Deus. Para ser mais preciso, a Bíblia não é UM livro, mas muitos livros reunidos num único volume. Já que começamos a dizer o que a Bíblia é, vamos continuar. Nesta biblioteca que é a Bíblia, muitos livros se candidataram a fazer parte da sua coleção, alguns permaneceram comuns a todas as tradições religiosas, outros foram acolhidos apenas em parte. A esta coleção chamamos CÂNON, ou lista dos livros que reflete o entendimento da comunidade de fé que os acolheu. Ora, ao dizer isso já estamos explicando que a escolha dos livros que vão formar a Bíblia pode ser diferente entre as comunidades cristãs e entre as comunidades judaicas. Conforme as tradições ou a fé professada por cada comunidade e na medida que mais livros fazem parte da lista aprovada por elas, o “tamanho” da Bíblia pode ir aumentado, nesta ordem: Bíblia Hebraica > Protestante > Católica > Ortodoxa.
Mas o que a Bíblia é não se reduz à uma lista de livros. Ela é antes de tudo expressão da fé destas comunidades que conservaram e transmitiram seus livros. Por isso, a Bíblia é o reflexo escrito de uma experiência que antes foi vivida, compartilhada e confirmada no tempo. Daí dizemos que nas páginas da Bíblia encontramos a Palavra de Deus registrada em forma de reflexão, poema, histórias, novelas, anedotas, ditados populares, ensinamentos etc. E dada a sua qualidade literária, a Bíblia é um livro criativo, cheio de imagens, símbolos e histórias contadas sem medo de parecer irreal, apostando que o seu leitor é inteligente para discernir a verdade da sua mensagem. A Bíblia é também um livro que imita a vida humana da forma mais simples possível, de modo que qualquer um, onde quer que esteja e em qualquer época possa se identificar. Uma grande pretensão para um livro escrito a mais de 2.000 anos! Alguns exemplos? Então, veja como a Bíblia imita a vida quando mostra a violência, o ódio, a vingança, mas também a ternura, o amor e o heroísmo. Por fim, a Bíblia é como um espelho, onde quem lê se percebe refletido e assim o convite a ler (ouvir) suas histórias significa entrar em relação com o mistério, da mesma forma que fez quem as escreveu.
Uma vez mais, a Bíblia não é a Palavra de Deus, mas precisamos completar isso. O texto da Bíblia é composto de palavras extraídas da experiência humana, traduzindo de modo literário aquilo que Deus quis comunicar. É essa comunicação a Palavra de Deus e não as palavras da Bíblia (entende agora por que na missa não dizemos, após cada leitura, “Palavras”, no plural, mas “Palavra do Senhor”, no singular?). Essa é a razão por que precisamos interpretar as palavras da Bíblia com cautela, pois não devemos deduzir uma comunicação divina diretamente do texto, isso poderia configurar o que chamamos de fundamentalismo. Não existe comunicação sem interpretação, não existe nenhum meio “mágico”, pelo qual o ser humano, de qualquer época e latitude, seja capaz de entender sempre a mesma mensagem de um mesmo livro. O Espírito Santo não age como um feiticeiro! Por isso, assim como a Bíblia não se formou sem a inteligência e a criatividade humana, a nossa contribuição continua a ser necessária para que a comunicação divina continue a fluir através das suas páginas.


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