Marcelo Couto Dias[1]
Pensando em como deveria ser o início de um caminho de formação sobre assuntos relacionados à família, cheguei à conclusão de que o primeiro passo deveria ser a tentativa de mapear a situação em que ela se encontra atualmente.
Foi aí que decidi propor uma reflexão sobre alguns pontos (basicamente o capítulo II) da Exortação Apostólica Amoris Laetitia, sobre o amor na família, com a qual o papa Francisco completa o caminho trilhado pelos dois últimos sínodos.
O documento começa recordando que “o desejo de família permanece vivo nas jovens gerações” e, por isso, “o anúncio cristão que diz respeito à família é deveras uma boa notícia” (n.1). A alegria do amor que se vive nas famílias nos permite perceber que elas “não são um problema, são sobretudo uma oportunidade”.
Porém, está em curso na contemporaneidade, mais do que a redefinição de algum aspecto da vida familiar, uma “mudança antropológico-cultural” (n.32). O que está em jogo é a resposta às perguntas “Quem sou?” e “Como realizar-me plenamente?”.
Na nova visão de ser humano que vai se difundindo, a família aparece não como um caminho de crescimento e realização, mas sim como um fardo ou uma amarra. Diante disso, a nossa tarefa, para além da “denúncia retórica dos males atuais” (consequências dessa visão), “consiste em apresentar as razões e os motivos para se optar pelo matrimônio e a família” (n.35).
Em meio à “decadência cultural que não promove o amor e a doação” (n.39) é preciso retornar ao desígnio de Deus, que se revelou plenamente em Cristo. Afinal, “o mistério do homem só no mistério do Verbo encarnado se esclarece verdadeiramente” (Gaudium et Spes, n.22).
São várias as manifestações dessa decadência cultural. Entre elas o Papa cita o “individualismo exagerado”, no qual prevalece “a idéia de um sujeito que se constrói segundo os seus próprios desejos assumidos com caráter absoluto” (n.33); e a equivocada associação da liberdade com a “ideia de que cada um julga como lhe parece, como se, para além dos indivíduos, não houvesse verdades, valores, princípios que nos guiam, como se tudo fosse igual e tudo se devesse permitir” (n.34).
O Papa fala ainda de uma “cultura do provisório”, onde “tudo é descartável” (n.39), e de “tendências culturais que parecem impor uma afetividade sem qualquer limitação” (n.41). Essas ideias são incompatíveis com a família enquanto vínculo exclusivo, indissolúvel e aberto à vida.
Aqui chegamos a outro ponto discutido no documento: a queda demográfica. À medida que cresce no ser humano a incerteza quanto à sua identidade, cresce também a recusa a gerar vida. O Papa alerta para a gravidade dessa situação que “não só determina uma situação em que a sucessão das gerações deixa de estar garantida, mas corre-se o risco de levar, com o tempo, a um empobrecimento econômico e a uma perda de esperança no futuro” (n.42).
Outro aspecto que desafia as famílias é a ideologia de gênero. Essa teoria pretende separar duas dimensões intimamente unidas (a biológica e a sociocultural), afirmando que o ser homem ou mulher é uma construção social que independe da condição biológica de ser macho ou fêmea. Essa ideologia tem tentado se impor como pensamento único através de orientações legais e pedagógicas. É preciso proteger as crianças dessa ameaça e ajudá-las a perceber que somos criaturas e, por isso, devemos aceitar e respeitar a nossa humanidade como ele foi criada por Deus (cf. n.56). Como ensinou São João Paulo II, a diferença sexual manifesta nossa vocação ao amor.
Enfim, apesar dos desafios, não podemos deixar de advertir “que só a união exclusiva e indissolúvel entre um homem e uma mulher realiza uma função social plena, por ser um compromisso estável e tornar possível a fecundidade” (n.52) e anunciar que “os grandes valores do matrimônio e da família cristã correspondem à busca que atravessa a existência humana” (n.57).
[1] Professor de Sociologia e doutorando em Família na Sociedade Contemporânea.



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