O Arcebispo de Salvador e Primaz do Brasil, Dom Murilo Krieger, recebeu a medalha Thomé de Souza no dia 14 de junho. A maior honraria concedida pela Câmara Municipal de Salvador foi outorgada a Dom Murilo em reconhecimento ao pastoreio e ao trabalho desenvolvido pelo Arcebispo nesta Igreja Particular e junto à sociedade soteropolitana. Confia, na íntegra, o discurso proferido por Dom Murilo na ocasião:
Câmara Municipal de Salvador
Sessão Solene de outorga da Medalha Thomé de Souza
Salvador, 14.06.2017
Dom Murilo S.R. Krieger, scj
Arcebispo de São Salvador da Bahia e Primaz do Brasil
“Cresce a crise política”; “Descoberto novo desvio de dinheiro público”; “Cracolândia faz dez vítimas”; “Insegurança deixa população preocupada”; “Aumenta número de meninos de rua”… Essas manchetes não são de jornais, revistas ou noticiários da África ou do Oriente Médio. São de nosso país. Não são manchetes de um passado remoto. São desta semana. Elas expressam a verdade? Sim! Expressam toda a verdade? Não! A verdade é bem maior; é mais ampla. Nesses mesmos veículos de comunicação poderiam estar estampadas outras manchetes, também verdadeiras: “Voluntários dedicam-se a jovens dependentes de drogas”; “Idoso abandonado é acolhido em asilo”; “Organizações Não Governamentais apoiam menores sem família” …
Somos passageiros no trem deste mundo. O que nossos companheiros de viagem têm direito de esperar de nós? Que tipo de manchetes nossa vida pode fornecer para os noticiários?
Eu sonho; você sonha. E quem não sonha? É próprio do ser humano olhar para horizontes ilimitados. Nossos sonhos e ideais fazem nascer em nós o desejo de mudar o mundo em que vivemos, não nos conformando passivamente com a realidade que nos cerca. No mais profundo de nosso coração há uma força que nos impulsiona, que nos deixa inconformados e nos torna capazes de dar a vida para a construção de um mundo solidário e fraterno.
Temos sonhos porque o Criador faz arder em nosso coração a chama da insatisfação. “Feliz”, dizia Dom Helder Câmara, “feliz de quem atravessa a vida tendo mil razões para viver”. Foi motivado por um sonho, foi em busca de razões para viver que Thomé de Souza aceitou a nomeação do Rei de Portugal e se tornou o Primeiro Governador-Geral do Brasil. Depois do fracasso das Capitanias Hereditárias, Portugal fazia um novo esforço para não perder as ricas terras que Pedro Álvares Cabral havia descoberto.
Ao chegar no Brasil, em 1549, Thomé de Souza, com 46 anos de idade, tinha uma difícil missão pela frente: fundar, povoar e fortificar a cidade de Salvador. Nos quatro anos de sua permanência nesta cidade, ajudou na criação do primeiro Bispado do Brasil – por ser o primeiro recebeu da Santa Sé o título de Sede Primacial do Brasil; incentivou a agricultura e a pecuária; e deu o necessário apoio para a fundação do primeiro Colégio, que tinha à sua frente a Companhia de Jesus – os Jesuítas, que com ele tinham vindo para o Brasil.
Penso que Thomé de Souza – que dá o nome à Medalha que hoje recebo – descobriu que razões para viver são encontradas quando uma pessoa se coloca a serviço das outras; quando contribui para a construção da comunhão na sociedade.
Passados pouco mais de quatro séculos e meio, a cidade que Thomé de Souza implantou aqui – digo “implantou” de propósito, já que ele trouxe o projeto da cidade a ser construída -, cresceu, enfrentou desafios, foi invadida, reconquistada e se tornou, no cenário nacional, um importante centro político e econômico. Além disso, Salvador viu nascer inúmeras manifestações e tradições religiosas. Fruto disso são nossas antigas igrejas, belíssimas, que causam surpresa e admiração em quem as visita. Felizmente, várias dessas igrejas foram restauradas recentemente ou estão em fase de conclusão dos trabalhos.
Hoje temos consciência de viver numa época em que, mais do que andar em caminhos prontos, é preciso abri-los ao caminhar. Há os que dizem estarmos na sociedade pós-industrial, também chamada de pós-moderna ou informacional. O que é certo é que vivemos numa época de profundas transformações. Cada dia somos surpreendidos com novas invenções e descobertas. Mas, em que direção caminhamos?… Conseguiremos acabar com as exclusões e as diferenças gritantes que existem entre nós? A globalização continuará sendo benéfica apenas para pequenos grupos? Ou será possível levantarmos a bandeira da globalização da solidariedade? Somente ela fará com que a globalização econômica se processe levando em conta o respeito a cada pessoa humana.
Sim, é possível a construção desse mundo, desde que não aceitemos adorar “bezerros de ouro”, como fizeram os judeus no deserto – “bezerros” que hoje têm outros nomes: consumismo, individualismo e ganância. Levados por isso, há os que roubam muito mais do que dinheiro: roubam a saúde da população pobre; roubam a escola e a merenda da criança indefesa; roubam sonhos de quem só conhece “a vida severina”. Por outro lado, a busca do prazer egoísta e imediato gera o vazio e a desilusão, a infelicidade e a depressão. Não há droga que dê sentido à uma vida assim.
O poeta Fernando Pessoa aponta numa direção: “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”. Em cada um nós, soteropolitanos ou habitantes desta cidade, há uma alma que não é pequena. As dimensões do coração de cada um de nós são enormes. Não aceitemos, pois, a mediocridade como norma de vida. “Feliz de quem atravessa a vida inteira tendo mil razões para viver”. Permitam-me dizer-lhes: há em cada um de nós um anseio profundo daqueles valores autênticos que têm em Cristo sua plenitude. Ele nos ensina que nenhuma sensação é tão nobre como aquela de saber que nossa presença no mundo o torna melhor.
Somos chamados a ser “os sentinelas da manhã”. Encontramos o sentido dessa expressão no Profeta Isaías, que viveu cerca de sete séculos antes de Cristo. O Profeta pergunta: “Guarda, a quantas está a noite?” A pergunta é repetida: “Guarda, a quantas está a noite? O guarda responde: Chega o amanhecer, mas ainda é noite” (Is 21,11-12). Para muitos de nossos irmãos e irmãs ainda é noite: eles não têm resposta às suas necessidades básicas; não sonham; não têm esperança. São pessoas que “têm fome e sede de justiça” (Mt 5,6), mas sofrem as consequências da falta de ética em nossa sociedade. Os sinais desta crise são evidentes e os meios de comunicação social os apontam diariamente: falta honradez na vida política, profissional e particular. Como resultado disso, vemos crescer os níveis de violência, a discriminação social, o abuso do poder, a corrupção, o cinismo e a impunidade. Em resposta a esses desafios, aceitem ser sentinelas da aurora deste novo milênio. “Ainda é noite”, reconheçam. Que suas vidas, contudo, sejam o anúncio de uma nova manhã que vem chegando, de um novo sol que começa a brilhar no céu de suas vidas.
Agradeço ao Vereador Joceval Rodrigues a iniciativa da Resolução que me outorgou a Medalha Thomé de Souza; agradeço ao Presidente desta Casa, Vereador Leo Prates, pelo apoio dado a tal iniciativa; agradeço aos Vereadores desta Casa que a aprovaram.
Aceitei receber esta homenagem, que julgo imerecida e fruto da bondade deste povo, porque partilho dos sonhos das senhoras e dos senhores. Acredito que todos procuram mil razões para viver e sonhar, para dar um sentido às suas vidas e tornar o mundo melhor. Por favor, não deixem que ninguém mate a alegria, o entusiasmo e os sonhos que os animam. Sim, é preciso reconhecer: “ainda é noite”. Mas, nos olhos de vocês, vejo as estrelas que anunciam a chegada de um novo tempo, de uma nova manhã.
Foto de capa: Ascom da Câmara Municipal de Salvador



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